Bicicletas: modo de uso
Estripulias ao guidão eram divertidas em minha infância, mas pedalar
em meio ao trânsito selvagem de São Paulo é um elevado risco
por Roberto Agresti
EDITOR DA WWW.MOTO.COM.BR
No comecinho dos anos 70 instalaram grades cercando o Parque da Aclimação, em São Paulo, para evitar que à noite o local virasse um bordel a céu aberto. Se para uns (e outras) tal iniciativa foi detestável, para minha turminha do bairro o tempo que durou a tal reforma foi uma festa. Para a molecada, ali pelos 10 ou 11 anos, o que acontecia assim que o sol se punha entre as árvores ainda não interessava para nós — mas andar de bicicleta ali, sim, e muito.
Com as obras o Parque ficou parecendo um cenário de bombardeio: montes de terra cá e lá, crateras, pedras, terra revirada para todo lado. Logo virou pista de bicicross, antes mesmo que alguém tivesse ouvido falar essa palavra. Não sabíamos ainda que pular barrancos de bicicleta era ou viria a ser um esporte, mas achávamos aquilo tudo muito divertido. Outra modalidade que "inventamos" ali, e que depois ganhou notoriedade, é o downhill: alinhavamos no topo da mais íngreme pirambeira do parque e... adeus, descida abaixo! O mais divertido era o prêmio por não cair no meio do percurso: mergulhar no lago com bicicleta é tudo.
Esse era o lado fora-de-estrada de nossas estripulias ao guidão, mas havia também as artes no asfalto dessa fase pedal, pré-motor, e bem mais perigosas. A maior delas era sair pela cidade nas noites de sábado, e o roteiro favorito seguia pela Av. Paulista chegando até a Rua Augusta, de onde despencávamos para o lado dos Jardins. Interpretem o termo "despencar" não como força de expressão, mas sim literalmente. Inspirados pelo velho hit "desci a rua Augusta a 120 por hora...", frear, só em último caso.
Nos cruzamentos, o sinal vermelho ou verde nada significava para o bando de quase uma dezena de camicazes, que contavam com gritos para alertar pedestres e motoristas e com o anjo da guarda para voltar são e salvos para casa. Detalhe significativo era minha bicicleta de então (período pré-Caloi 10, sonho de consumo dos anos seguintes): uma Goricke aro 24, aliviada da pesada traquitana que eram os freios por varão. Para diminuir a velocidade, costumava colocar o pé entre o quadro e o pneu traseiro, e consumia um Bamba ou Kichute por semana. Aviso aos mais jovens que Bamba e Kichute eram marcas dos tênis mais populares então.
Terminada a alucinante descida da Augusta, seguíamos (quase) comportados até o Pandoro, um bar da moda, onde à porta estacionavam as melhores motos e carros de São Paulo. E lá ficávamos babando o ovo, imaginando o dia em que teríamos grana para largar a bicicleta por algo reluzente — e com motor.
Escolher o trajeto
Quarenta anos depois, tenho algumas certezas. Primeira delas é sobre o profissionalismo e a competência de meu anjo da guarda, ainda hoje muito prestativo, pois apesar dos 50-e-passa ainda não dei moleza para ele. Outra é que sinto que há algo de muito estranho nessa gritaria dos ditos "cicloativistas" quando ocorrem acidentes envolvendo veículos a motor e bicicletas na capital paulista — infelizmente, cada vez mais frequentes.
Por mais insano que tenha sido em minha adolescência — e acreditem que fui bastante —, eu e minha turma (gangue?) da Aclimação sabíamos que andar de bicicleta, em especial na Paulista ou Augusta, era um negócio bem perigoso. E, até por conta disso (ou principalmente por isso...), muitíssimo divertido. Não havia então lanterninhas vermelhas piscantes para aplicar na bicicleta e sinalizar nossa existência. Capacete? Nem pensar, assim como a consciência que usar roupa clara ajudaria a nos enxergarem. Nada disso.
Certamente naquele tempo São Paulo era mais amena do que nos dias atuais em termos de trânsito, mas nem por isso deixava de ser uma grande metrópole, ou seja, local onde andar de bicicleta deve ser algo circunscrito a vias de trânsito mais calmo, ruas de bairro, e mesmo assim com cuidado extremo. Escolher o trajeto de acordo com o veículo que estou usando é algo que faço até hoje, e o exemplo é que evito trafegar nas Marginais de moto sempre que posso.
Aliás, é frequente que eu escolha uma moto ou um scooter como vetor no caos paulistano e sei bem que, quanto menor é a moto que tenho nas mãos, mais ágil ela é, mas menos visível também. Com frequência cada vez maior, parado em um sinal de trânsito (na Paulista, ou Augusta), tomo um susto: passam por mim ciclistas, homens e mulheres, plenamente paramentados com capacete, luzinhas, colete reflexivo e o que mais houver, mas que — como eu fazia há 40 anos — ignoram completamente o semáforo.
Pois é, raros são os ciclistas que respeitam as regras de trânsito. Aliás, extrapolo: raros são os motociclistas que o fazem, e os motoristas de carros, caminhões e ônibus também. Ninguém respeita nada, ou quase nada, a menos que perceba uma grande probabilidade de ser multado pela infração. Essa é a regra entre nós, infelizmente.
Posto isso, e apesar de concordar que há carros demais, fumaça demais, congestionamento demais e estresse demais na minha cidade e no mundo, não compactuo com a atitude dos xiitas da bicicleta, que pleiteiam uma improvável preferência por parte dos outros usuários das vias públicas paulistanas.
Cidade criada sem nenhum planejamento, que "foi indo" e "continua indo" periferia afora, derrubando matas seculares, invadindo áreas de mananciais e outros crimes ambientais do gênero, São Paulo não é Amsterdã, Toronto, Paris, nem mesmo Buenos Aires. Tem muito mais gente que as citadas e não há como incutir, de um minuto para outro, uma tão radical mudança da matriz do transporte individual. Por "n" razões, a cidade é hostil ao uso da bicicleta, pois tanto faltam as necessárias ciclovias como perfil topográfico adequado. E, pior de tudo isso, há o já mencionado habitante selvagem, que faz da agressividade e do desrespeito às leis de trânsito o padrão vigente. Ciclistas também inclusos nisso.
A cada vez mais comum cena do ciclista totalmente paramentado, pedalando em uma faixa de rolamento de uma grande avenida paulistana, está se tornando comum — e bizarra, pois desconsidera a realidade vigente. A uma compreensível e elogiável defesa do transporte amigo do meio ambiente, há que se aliar medidas de bom senso, e atualmente em São Paulo escolher caminhos mais calmos para ir do ponto A ao B é a principal delas.
4 comentários:
Tudo isso ocorrendo com a benção de ecojornalistas que pensam que estão salvando o mundo pedalando suas Bikes...temos até uma empresa de bikeboys e reporteres do transito que utilizam o veiculo salvador da humanidade.
Boas lembranças! Eu e meus amigos fazíamos as mesmas estripulias em ruas perto do Aeroporto de Congonhas, várias ainda de terra, até uma corrida organizamos, na qual atropelei um pedestre...
Olá Roberto,
Concordo com as suas palavras, principalmente no quesito que ninguém respeita nada a não ser pelo fato de ser multado...
Eu tb vou trabalhar de Bike mas acho hipocrisia falar que é pelo meio ambiente...
Ps, vou de Bike mas Em Ribeirão Preto SP...
Concordo, Agresti. Faz-se muito barulho pelas razões erradas. Aliás, outra coisa que é irreal é a exigência de se manter 1,5m do carro para a bicicleta. Como é que o motorista vai fazer isso, em meio ao caos do trânsito? Vai colocar uma baliza no carro igual à dos caminhões, para saber que ali tem 1,5m? E os ciclistas, não conseguem ficar longe dos carros pq? Pq não tem espaço! Mesma razão pela qual os motoras não conseguem manter distância. Acho muito legal, mas ainda irreal. Mesmo aqui em BRasília, terra das largas (?) avenidas essa exigência não tem como ser cumprida.
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