Isso é o que importa
Se governo e indústria não se entendem quanto ao ao papel dos importados, o principal é termos direito a bons automóveis
por Roberto Agresti
Acordo com uma notícia-bomba no ambiente da indústria automobilística brasileira: alguém avisa que o acordo de importação com o México, pelo qual os carros lá fabricados entram no Brasil sem pagar Imposto de Importação e adicional de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), está prestes a ser cancelado. Motivo: déficit na balança entre os dois países, o que em palavras comuns significa que os mexicanos estão vendendo mais carros para os brasileiros do que os brasileiros vendem para os mexicanos.
Na mesa do café da manhã, olho pela janela e vejo, estacionado diante de casa, um mexicano: o Fiat Freemont, feito em uma fábrica da Chrysler em Toluca, pois a marca italiana detém gorda fatia da norte-americana de uns tempos para cá. O carrão custa de 80 a 90 mil reais e, se vier ao Brasil pagando imposto cheio, vai custar bem mais, claro. E ficará inviável vendê-lo aqui. Outra vitima da marca italiana seria o 500, também feito na terra do Chaves e do seu Madruga.
Enquanto espero meu café esfriar, imagino que naquela hora fervendo mesmo está o clima em Betim, MG, assim como em São Bernardo do Campo, SP, pois a Volkswagen também traz carros do México para vender no Brasil: o Jetta e a Jetta Variant vêm de lá, e antes vinha o Beetle, que provavelmente estava a caminho em sua nova geração. Não distante dali está a Ford, que tem o Fusion e o Fiesta, também mexicanos. Carros importantes na linha da empresa, um no topo, vendendo bem, e um no meio do pelotão, evoluindo.
Meu café esfriou, dou uns goles, mas o que deve ter esfriado mesmo são os ânimos do pessoal da Honda: no belo prédio do Morumbi deve estar todo mundo meio jururu com a notícia. O novo CR-V, lançamento mundial e muito esperado no Brasil, é fabricado no México, como era o antigo...
GM? A notícia também deve ter estragado a manhã lá pelas bandas de São Caetano do Sul, pois o Captiva vem da terra da tequila. Mas tristes mesmo devem estar os caras da Nissan, pois nada menos do que quatro de seus automóveis vêm do México: os manjados Tiida e Sentra e as novas apostas da marca, March e Versa. É quase sua linha inteira por aqui.
Já na rua, em meio ao mar paulistano de carros parados, vou tentando achar mexicanos. Não é fácil — carro não usa sombrero, nem bigodón. Penso na Dilma, em Cuba, fumando um charuto com Raul Castro, ali pertinho do México. Será que ela escolheu sapecar essa notícia que deixou em polvorosa um dos mais importantes setores da economia brasileira só porque está ali, perto da terra de Pancho Villa, ou porque está longe de Brasília, onde os lobistas das fábricas de carros já deviam estar, àquela altura da manhã, escolhendo as armas para a cruzada contra essa medida? Chamando um ministro para o almoço, um senador para um jantar, uns deputados para um happy hour...
No fim do ano passado o governo fez "bu!" nos importados, aumentando substancialmente o IPI e tornando alguns preços, que até eram possíveis, impossíveis. A associação dos importadores, Abeiva, gritou, claro. Chamou a medida de protecionista, o que obviamente é, mas o curioso é que muitas das marcas afetadas pelo inesperado aumento também têm fábrica no Brasil. Ficou a sensação de que a medida — tomada, segundo alguns, para proteger a indústria automobilística nacional —, no fim, não protegeu ninguém. Nem quem seria avantajado achou graça.
Dois meses se passaram, e o carro feito no México é a bola da vez. Mudança da regra que, de novo, parece não estar agradando ninguém. Mercado fechado.
Desde que o presidente Juscelino Kubitschek capitaneou a instalação de uma verdadeira base industrial para fabricação de veículos no Brasil, no fim dos anos 50, que temos carros feitos aqui. E desde sempre eles tiveram o aval do governo e do povo, esquema simples no qual todos ganham: nós compramos e fazemos feliz o fabricante, que fatura, e o governo, que faz o mesmo via impostos.
Houve um tempo — bastante tempo, de 1976 a 1990 — em que o Brasil viveu apenas dos meios de transporte fabricados aqui mesmo, fechando as importações. Se por um lado isso pode ter sido motivo de orgulho para os mais patriotas, por outro levou ao "efeito carroça" escancarado pelo presidente mauricinho Fernando Collor, que em 1990 acabou com o protecionismo à sonolenta e acomodada indústria e abriu as fronteiras aos importados.
Disso resultou a modernização de toda nossa frota e também dos fabricantes, que depois de espernear investiram e se adequaram, tanto em know-how produtivo e maquinário quanto em termos de produtos, vendendo aqui o que se vendia lá fora, no dito Primeiro Mundo, ou perto disso.
No entanto, nos últimos tempos, mais de um notou que as fábricas no Brasil mudaram seu "jeitão": carro bacana, altamente tecnológico? Trazem de fora. Carro simples, chulé? Fabrica aqui. Justificativa: nosso custo de fabricação não compensa a produção de produtos de alto valor agregado.
Estranha afirmação: suponho, inocente, que no passado — nos anos 60, 70 e 80 — devia ser mais difícil fabricar carros no Brasil. O parque industrial era menor, a tecnologia idem. Não deve ter sido fácil para a GM, por exemplo, lançar aqui o Chevette, que saiu antes do similar na Alemanha e com a mesma tecnologia. E a Ford? Também quis fazer bonito naqueles tempos e fabricou aqui o Galaxie que, em seus primeiros tempos de Brasil, estava praticamente atualizado com o norte-americano. Até a Chrysler, na estreia da marca Dodge em automóveis nacionais, produzia um Dart equivalente ao que rodava em Detroit.
Diz-se que os anos 80 foram a "década perdida", mas naquele período tivemos lançamentos em sintonia com o mercado europeu, como Monza, Uno, Escort, Santana. Conta-se que eram tempos de mercado contido, de baixos volumes de vendas. Contudo, havia interesse até em produzir um conversível de fábrica (o Escort) no Brasil, o que hoje é impensável. Estávamos errados?
Encerro esta divagação com uma cerejinha para se colocar em cima desse sorvete: a indústria automobilística foi o segmento campeão em remessa de lucros para suas matrizes no ano de 2011 — US$ 5,58 bilhões, cifra 36% superior à enviada em 2010. Curioso ser essa mesma indústria aquela que reclama dos tais "altos custos" e da impossibilidade de oferecer produtos melhores e mais modernos com fabricação local.
Não sou nacionalista, tenho horror a qualquer tipo de protecionismo, mas governo e indústria automobilística têm que combinar o que nos dizer, antes de dizer. Ou, melhor ainda, lembrar que nós — o povo — somos os que compram os carros e os que pagam os impostos. Não é justo pagar caro por algo antiquado, nem justo ver nosso amigo metalúrgico sem emprego vendendo pipoca na frente do cinema.
Importado ou nacional, deve haver justiça no preço do automóvel vendido no Brasil, e já está escancaradamente claro que os preços que pagamos são tudo, menos justos. Enquanto o que se faz aqui não for tão bom ou tão barato quanto o que se faz fora daqui, que se venda o que vem de fora, enquanto quem de direito — governo e fabricantes — se ajusta para fazer com que tenhamos capacidade de produzir carros bons, baratos e competitivos em termos mundiais.
Isso, sim, é o que importa.
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