Existe um prazer secreto, meio sádico, em se criar um carro sonso – algo como aquelas pessoas que escondem sua potência, só se revelando inteiramente em ocasiões especiais.
O Fordinho 1929 que enfeita esta página é um desses santos de pau oco. Sua alma maligna foi caprichosamente camuflada sob a cândida aparência original. A construção chega ao requinte de vestir o motor moderno com uma roupa antiga, e é isso que faz desse carro algo único.
Bolado e executado na Finlândia, o projeto foge ao convencional dos hot rods. Nada de pinturas flamantes, adaptações fáceis ou estupros mecânicos. O que faz esse carro tão especial é o capricho de disfarçar todas as alterações sob a aparência original. Um trabalho de detalhismo quase patológico.
A história da transformação começa nos anos 90, quando um antigo piloto de rali de velocidade – que quer permanecer anônimo – comprou dois velhos Ford na Argentina: um Modelo T e um Modelo A.
Levados para a Finlândia, os automóveis foram deixados nas oficinas da Mäkelä Auto-Tuning, especializada em restaurar carros clássicos e de competição.
O Modelo T recebeu um trato seguindo as mais finas regras da originalidade e não fez a cabeça do dono, acostumado a pilotar máquinas rápidas. O cliente, então, decidiu que a restauração do Modelo A deveria levar um molho apimentado. Foi neste espírito que Kari Mäkelä, o dono da oficina (ou melhor, ateliê), pediu carta branca.
O cliente chegou a sugerir "baixarias" como rodas BBS do antigo Omega, que deixariam o carro próximo a um hot rod como tantos outros. Mäkelä, contudo, tinha outras idéias para aquele Fordinho bom de origem, jamais mexido, batido ou restaurado.
Começou desmontando-o inteiro. Uma vez galvanizado o chassi, a suspensão foi enfrentada com maestria, mas foram mantidas a estrutura e arquitetura originais, com eixos rígidos.
O Ford continua a ter feixes de molas transversais e amortecedores "de bracinho" como nos anos 20 – mas, agora, os amortecedores são da marca Girling (de Aston Martin DB4 na frente e de Austin-Healey atrás!).
As rodas parecem de madeira, mas foram fundidas em alumínio e pintadas – numa imitação convincente dos aros usados na década de 20. O resultado combina leveza e resistência para o alto desempenho, mas sem choque visual com a aparência do Fordinho.
O motor escolhido não foi um V-8, mas um Ford Cosworth BDA, de quatro cilindros em linha e dois litros, usado em ralis nos anos 80.
Bloco e cabeçote são de alumínio, há duplo comando e 16 válvulas. É um motor dos Escort de rali dos anos 80 (Grupo 4), que rende 251 cv graças a uma injeção e a uma ignição ultramodernas. Tudo foi cuidadosamente disfarçado sob tampas que reproduzem o cabeçote original "cabeça chata" do Fordinho, a ponto de as velas modernas ficarem escondidas.
A injeção multiponto vai entocada em um filtro de ar de aparência retrô, e o escapamento parece de época.
A caixa usada é uma ZF de Escort de rali, com cinco marchas. É comandada por uma alavanca deslocada para frente, a fim de que fique na posição original.
O chassi teve sua arquitetura original preservada, mas ganhou reforços em X. O diferencial de deslizamento limitado pertencia a uma Toyota Hilux, para agüentar o torque sério do motor Cosworth.
Os freios foram mantidos a tambor, mas também são da Toyota e com dimensões mais do que generosas para o reduzido peso do Fordinho.
A caixa de direção é uma ZF muito usada em carros alemães, enquanto a eletricidade, obviamente de 12 volts, conta com um alternador disfarçado de dínamo.
Para não destoar do conjunto da cabine, cuidadosamente original nos bancos e no estofamento, o volante foi reproduzido especialmente pela Moto-Lita.
A carroceria foi totalmente restaurada, bem como o interior, que tem os bancos e instrumentos originais no painel. No teto há um pequeno conjunto de instrumentos eletrônicos que pode até gravar o funcionamento do automóvel. Para evitar olhares críticos dos xiitas da originalidade, esse quadro pode ser coberto por uma tampa.
Para os momentos de mais ação, cintos de segurança de quatro pontos podem ser instalados facilmente nos bancos dianteiros.
Pesando 1.050 kg e com 251 cv, o Ford tem um desempenho furioso. Gira alto e ruge um som lindo, digno de carro de corrida. O construtor estima que ele chegue a 210 km/h de final, alcançando 100 km/h em 5,8 segundos. Só o que faltou foi coragem para passar dos 180 km/h.
— Acima disso, o carro fica perigoso — diz Mäkelä, em entrevista por e-mail.
Ele conta que realizou uma montanha de ajustes e o carro funciona perfeitamente. Não inclina em demasia nas curvas e sai bonitinho nas quatro rodas, levantando um pouquinho a roda dianteira interna.
Os pneus Dunlop, diagonais e fabricados hoje em dia para corridas históricas, funcionam muito bem num carro tão leve. Sua borracha macia foi escolhida para dar muita aderência em curvas, embora a durabilidade seja pequena.
O motor de liga leve dá uma distribuição de peso de 45% no eixo dianteiro e 55% no eixo traseiro, o que o torna esse Fordinho finlandês muito diferente dos hot rods americanos, geralmente equipados com um V-8 pesadão.
Como diz o próprio Mäkelä, é difícil de acreditar como esse carro anda. O Fordinho chama uma atenção enorme ns ruas e, principalmente, nas estradas, onde ele cruza a 130 km/h, para grande incredulidade dos outros motoristas.
Essa obra de arte mecânica sobre rodas demorou três anos para ficar pronta. Quanto custou? O criador não dá números, mas apenas uma idéia: o suficiente para ser o Ford Modelo A mais caro do mundo.
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