O anacronismo rodante
Recordista de longevidade e fiel às tradições, Morgan 4/4 completa 80 anos em produção
Por Jason Vogel
A visão dos tijolos aparentes na fachada já prepara o visitante para a viagem à era de ouro da indústria britânica. Construída em 1914 e ampliada em 1925, a fábrica resiste, teimosa, à modernização do mundo. Em vez de caixas cheias de peças de plástico, o que se vê é uma oficina de marcenaria com moldes para curvar madeira, formões, fresas e plainas. Tudo ali é verdade, nada é asséptico. Ouvem-se marteladas, sons de serra e o alarido dos operários empurrando carros semi-montados de um setor a outro, como nos tempos pré-Henry Ford. Os 180 empregados, alguns com mais de 50 anos de casa, têm um orgulho em comum: a Morgan Motors é uma das poucas marcas de automóveis em que o elemento humano ainda pode mostrar seu talento de artesão.
É dessa fábrica de Pickersleigh Road, em Malvern, a 220km de Londres, que sai o carro que bate seguidos recordes de longevidade em produção: o Morgan 4/4, lançado em 1936 e feito ainda hoje conforme sua receita original. O modelo acaba de completar 80 anos em linha — para comparar com outras lendas, o Fusca resistiu por 65 anos e a Kombi, por 63.
Quando o primeiro Morgan 4/4 chegou às ruas, a hoje rainha Elizabeth II era uma princesinha com 10 anos de idade. O rei era seu tio Eduardo VIII, aquele que suportou o trono por menos de um ano e abdicou da coroa britânica para se casar com uma americana divorciada.
Na Segunda Guerra, a produção da Morgan foi interrompida para que a fábrica de Malvern se juntasse ao esforço bélico fazendo componentes de aviação. No final de 1945, o modelo 4/4 voltou à linha e, após tanto tempo, não dá qualquer sinal de que deixará de ser fabricado.
Apesar dos preços salgados (a partir de £ 33.075, o equivalente a R$ 170 mil), as filas de espera para a entrega duram de seis meses a um ano. Antes, era preciso ter ainda mais paciência e aguardar até sete anos (!) pelo esportivo, mas a marca vem conseguindo se ampliar, organizar-se melhor e dar mais ritmo à produção.
Por “ampliar”, leia-se fazer não mais do que 700 carros por ano, entre todos os modelos da marca, incluindo aí o Morgan Three-Wheeler (excentricidade de três rodas e motor V-Twin de moto à frente da grade) e o monstro retrôfuturista Aero 8, que foi lançado em 2001 com motor BMW V8 e chassi de alumínio. O que nos interessa aqui, porém, é mesmo o 4/4, símbolo máximo da tradição, mas que já representou uma virada na história da empresa.
Fundada em 1910, a marca criada por Henry Frederick Stanley Morgan (vulgo HFS) se dedicava exclusivamente à produção de carros de três rodas. Em meados dos anos 30, atento às tendências de esportivos, HFS resolveu que era chegada a hora de lançar um modelo com quatro rodas e motor de quatro cilindros. Nascia aí o 4-4 (no início, o nome era grafado com um hífen em vez da barra atual).
Apresentado nos salões de Londres e Paris de 1936, o Morgan 4-4 tinha a construção típica dos esportivos ingleses da época: um leve roadster de dois lugares, com motor dianteiro de pequena cilindrada (inicialmente um Coventry Climax, de 1.122cm³) e tração traseira.
Sobre o chassi com longarinas de chapa dobrada ia a carroceria de alumínio. Sua estrutura, como em tantos modelos pré-guerra, era de madeira.
Com 34cv, o carrinho se garantia na relação peso-potência. E tinha a vantagem de ser muito estável, graças a um detalhe bolado por HFS Morgan: a suspensão independente tipo sliding pillar (ou coluna deslizante), em que a manga de eixo de cada roda dianteira sobe e desce encaixada em um tubo vertical fixado ao chassi.
— Em pista lisa, o carro é imbatível. Rola pouco a carroceria e mantém as rodas sempre perpendiculares ao chão. O problema é a dureza, tremendo incômodo no piso esburacado — diz Richard Flynn, dono de um Morgan desde 1986 e sócio da oficina de R&E Restaurações, em São Paulo.
desmancha sem bater
Flynn estima que uns 70 Morgan chegaram ao Brasil entre os anos 50 e 70. E fala dos pontos fracos do carro:— O chassi feito de chapa aberta acaba dando fadiga e trinca. A estrutura de madeira da carroceria apodrece. O carro vai desmanchando...
Mesmo assim, os esportivos da marca foram conquistando fama e os corações dos apaixonados por roadsters velozes.
A estreia nas 24 Horas de Le Mans e deu em 1937. Na edição de 1962, o êxito histórico: um Morgan foi campeão na categoria para carros com até 2.000cm³ de cilindrada e... voltou rodando para a Inglaterra!
Ao longo das décadas, aquele 4-4 inicial foi mudando em detalhes. Nos anos 50, os faróis foram incorporados aos para-lamas e a grade, antes reta, foi encurvada. O modelo deu crias como os Morgan Plus 4 (com motores sempre na faixa dos 2.0 litros) e o Plus 8 (com um V8). Ganhou ainda uma versão de quatro lugares.
Hoje, os Morgan 4/4 se mantêm como versão mais leve e simples da linha, equipados com motor Ford Duratec de 1,6 litro (e 111cv) e câmbio de Mazda MX-5. A essência do modelo de 1936 continua presente nas formas, na estrutura de madeira, na suspensão exótica, no vento no rosto e na produção artesanal.
Fato é que, nesses 80 anos, a outrora poderosa indústria automobilística inglesa foi sucateada ou vendida aos estrangeiros. Colossos fabris como a Austin e a Morris desapareceram sem deixar vestígios. Hoje a Rolls-Royce e a Bentley pertencem aos alemães, a Jaguar e a Land Rover são dos indianos e (que heresia!) a produção dos black cabs está nas mãos dos chineses, bem como a marca MG. Sobrevivendo a tantas transformações, a ortodoxa Morgan continua a ser uma empresa britânica e ainda 100% pertencente aos herdeiros do fundador HFS. Inovar para quê?
2 comentários:
Uma maravilha. O texto e a história.
Uma maravilha. O texto e a história.
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