quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A mão e o metal - Michelangelo sobre rodas



Barchetta Biotto Alfa Romeo 6C3000
Se trabalhasse em mármore, Toni Bianco teria o porte de um Michelangelo. Perto de completar 80 anos, o carrozziere ainda é capaz de criar, numa estreita garagem de São Paulo, obras de arte como os Biotto que enfeitam esta edição. São carros feitos sob medida, motivados pelo impulso de mecenas do empresário Paulo Trevisan, criador do Museu do Automobilismo Brasileiro, em Passo Fundo (RS), objeto de um post futuro.

Berlinetta Biotto Fiat 1600
Nas versões Barchetta e Berlinetta, os dois Biotto ainda estão em fase de finalização. São frutos da grande arte de construir esportivos a partir da imaginação, usando somente as mãos e o metal. Essa história vem de longe.
torino Bianco, o Toni, é parte da história do automobilismo brasileiro desde a década de 50. Italiano do Vêneto, chegado ao Brasil em 1952, ele foi se estabelecendo como produtor de carros de competição.
Il Maestro Toni Bianco
 Seu apogeu foi nos anos 60, quando construiu com Chico Landi os monopostos Fórmula Júnior. Um desses chassis mais tarde recebeu carroceria aerodinâmica de Rino Malzoni e Anisio Campos. Batizado de Carcará, tornou-se o recordista brasileiro de velocidade pura: 214km/h em 1966, com um motorzinho DKW de apenas 1.100cm³...
 Bianco estava por trás de quase tudo o que fazia sucesso nas pistas. Participou da lendária Equipe Willys, para a qual fez os Bino Mark-I e Mark-II — este, o carro que mais venceu provas no Brasil. Não bastasse, também projetou os Fúria para as corridas, além do esportivo "de passeio" Bianco, nos anos 70.

Detalhes da construção da carroceria em alumínio
Mas o tema aqui são os recentes Biotto (nome derivado de Ottorino). Comecemos pela Barchetta, termo inventado pelo jornalista Gianni Canestrini para definir carros de corrida que, por sua forma, lembram as velozes lanchas de Veneza. São automóveis minimalistas dedicados à velocidade e à leveza, sem preocupações de refinamento formal, mas com a proverbial beleza das criações italianas, sejam veículos, roupas ou edifício
 
A Itália é a pátria das traseiras bonitas...
A Barchetta criada por Bianco, especialmente para Trevisan, é montada sobre uma mecânica Alfa Romeo 6C2500 SS. Este chassi vestia originalmente uma carroceria Pinin Farina e chegou ao Brasil em 1951, trazido pela família Paula Machado. Com os anos, a carroceria original do Alfa dos Paula Machado foi se degradando, a ponto de sobrar só o chassi, comprado e restaurado pelo Museu do Automobilismo Brasileiro. O motor é a última obra de Vittorio Jano, deus da engenharia mecânica que motivou as Alfa do pré-guerra. Tinha seis cilindros em linha, dois comandos no cabeçote e, originalmente, 2,5 litros de capacidade cúbica com 105cv.
No Brasil, a cilindrada foi aumentada para 3,0 litros pelo lendário piloto Camillo Christófaro. A potência subiu a estimados 200cv por meio de três carburadores duplos Weber 45, o que teoricamente permitirá à Barchetta Biotto passar dos 200km/h, mesmo com uma caixa de quatro marchas. Afinal, o carro pesa menos de 700kg.
Mas obra de arte mesmo é a roupa que veste esse chassi, feita nos mesmos sistemas da Carrozzeria Touring de Milão (1926-1966). Uma gaiola de tubos finos de aço sustenta uma pele de sutis folhas de alumínio moldadas a mão e martelo por Toni Bianco.  
detalhe do motor e suspensão dianteira da Alfa


É uma escultura de metal feita sem desenhos ou projetos preexistentes, apenas uma orientação do museu em seguir as ideias de Clemar Bucci, corredor argentino que fez uma Alfa nos anos 50. — O Trevisan me mandou fotografias como referência e eu já fui direto dando a forma nos arames. Se fizer no papel, demora muito — explica Bianco na maior simplicidade.
Tudo é feito na apertada garagem da casa do projetista, no bairro paulistano de Perdizes.
— É meu ateliê. Já fiz seis carros aqui, um por vez — conta, com sotaque italiano.

A construção em tubinhos e o belo motor Alfa 3 litros

De beleza impressionante, a carroceria da Barchetta lembra coisas italianas dos anos 50, mas sem copiar e apenas incorporando o espírito da época. A obra demorou nove meses.
— Cada carro é um filho que nasce — compara Bianco.
 Mais trabalhoso foi fazer o Biotto cupê. Ou melhor, Berlinetta, que é o termo italiano para este tipo de esportivo fechado e compacto. É outra evocação da década de 50, lembrando as Cisitalia-Abarth 204A.
Nasceu à maneira dos "Etceterini", nome genérico dado às centenas de fabricantes italianos de esportivos artesanais, como Stanguellini, Moretti e Giaur. Esses carros normalmente usavam mecânica Fiat 1.100 de 60cv, montada em chassi e carroceria leves, o que dava muita esportividade a um motor banal e resistente.
O chassi tubular do cupê é novo e foi feito em Passo Fundo. Para manter-se fiel aos projetos de motor dianteiro/tração traseira, o jeito foi casar um motor de Palio a uma transmissão completa de Chevette. Esse estágio, porém, é provisório, pois o plano é instalar uma mecânica Fiat Abarth italiana.
 
Berlinetta Abarth dos anos 50, a inspiração

Para vestir o chassi, Bianco novamente adotou o método da Carrozzeria Touring. A gaiola de tubos finos de aço é separada da pele de alumínio por plaquetas de algodão betumado a fim de evitar a corrosão eletrostática entre os dois metais diferentes. Fornece assim uma base sólida e forte para que o carro seja bom de curvas sem ter excesso de peso.
Por enquanto, não há acabamento interno. Quando estiver terminada, a Berlinetta deverá pesar uns 610 quilos — fazendo uma Fiat normal de rua parecer um elefante... Sempre lembrando que esse carro artesanal e de uso limitado não tem que responder aos regulamentos de segurança estrutural de um veículo moderno.

O Fúria Alfa Romeo dos anos 60, resstaurado
— O Bianco tem um trabalho inigualável. Ele faz uma solda impossível de ser reproduzida. Tem o domínio das temperaturas e do comportamento dos metais. Além disso, consegue uma harmonia perfeita nas linhas — desmancha-se o mecenas Trevisan. Quanto custa um carro feito por encomenda? Impossível dizer. Bianco diz apenas que cobra por mês de trabalho. Em maio passado, ele fez uma cirurgia cardíaca e interrompeu suas criações.
— Mas já estou 99% bom, graças a Deus, e pronto para outra — afirma.
A próxima obra, adianta, será uma reestilização dos Fúria e Bianco, feita de alumínio e com um grande motor. O mestre não pode parar.

11 comentários:

Nik disse...

Conta mais. Mais fotos. Mais!

Carlos disse...

Maravilhoso, Mestre!
E o seu texto, digno do trabalho do Toni!
Uns dois anos atrás, mais ou menos, a revista americana Sports & Exotic Car publicou uma reportagem sobre o Toni e suas criações, com foco no Furia de mecânica Lamborghini. Se não me falha a memória, escrita pelo Karl Ludvigsen.
É a obra do mago dos metais sendo reconhecida internacionalmente...

Alexandre Cruvinel disse...

Verdadeiras obras de arte ! E para nós, com gasolina nas veias, muito mais legal e valioso que um quadro na parede.

Portuga Tavares disse...

Mestre é mestre!
Tão bom quanto ler um texto sobre o Toni é ouvi-lo contar como cada carro foi construído.
Uma lição de humildade e talento.

Nanael Soubaim disse...

O aço até tolera alguns erros, mas o alumínio é temperamental e explosivo, exige que o artífice seja cavalheiro e cavaleiro ao mesmo tempo. Se em estamparias modernas isto já é difícil, imagine à mão! Soldar o alumínio é fácil, soldar direito é outra história, fazer o fio da solta se tornar parte das duas chapas unidas é algo que a faculdade não ensina, é preciso enxergar o que se faz como uma missão e viver missionáriamente. No que faz, Bianco é socrático ás últimas instâncias. É bom saber que ainda dividimos a mesma época.

José Rezende - Mahar disse...

"Blog recém criado e feito por você Mahar, está nos meus favoritos. O artigo que gerou para O Globo e essa postagem mostra muito esse lado do Toni e a essência da nossa decisão de produzir essa pequena série Biotto. O Toni naquela sua simplicidade e linguajar,que você sabe, tem essa capacidade visível e mãos mágicas de um grande artista. Outro aspecto:faz tudo desmontável e já sabendo onde serão as fixações no chassis. Que privilégio estar convivendo com essa pessoa ao longo dos últimos anos. Mesmo eu estabelecendo parâmetros e referências fui aprendendo a respeitar seu ritmo,deixando espaço para que os volumes e equilíbrio do conjunto fiquem por sua conta. Como conversamos longamente aqui em P.Fundo, apenas esses carros de característica italiana permitem esse tipo de trabalho exclusivo;com tolerância e aceitação crescente a nível internacional. Veja o caso da Argentina que já tem uns 7 encarroçadores em aluminio praticamente a nível empresarial. Graças a deus nós temos o "nosso"Toni Bianco! que está nos propiciando mais essas obras de arte para serem eternizadas."

PAULO TREVISAN

Eugenia Kos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Eugenia Kos disse...

Voce estava inspirado mesmo! Essa história emocionante podia até se tornar um filme! Vou reforçar o pedido do Nikollas: conta mais, conta...

Mário César Buzian disse...

Sensacional !!!
E que orgulho de saber que o Toni ainda produz essas maravilhas de encher os olhos !!!
Mestre Mahar,que texto sensacional...
Reforçando os pedidos acima, conta mais !!!

F250GTO disse...

Il vero capo lavoro.
Eu tive o prazer de ver o Cisitalia Berlinetta ainda sem pintura na famosa garagem do Toni.
É impressionante a intimidade do Toni com as chapas de aluminio, as ferramentas especiais que ele usa e ainda dá uma aula sobre a espessura das chapas que ele utiliza.
Tudo isso com toda a simplicidade e humildade citada pelo Portuga.
E o maravilhoso resultado está nessa espetacular matéria.
Toni Bianco sim, é o cara!
Parabens pelo delicioso post, Mahar.
Romeu.

Anderson disse...

Excelente texto e como é bom apreciar obras de arte.