Viagem de 60 anos em um dia
A emoção de dirigir um "Asa de Gaivota" e conhecer o temperamento de outras gerações da linha Mercedes SL
Jason Vogel
jason@oglobo.com.br
Enviado especial de O GLOBO - MARBELLA
Em fevereiro de 1987, o jornalista José Luiz Vieira publicou na saudosa revista "Motor 3" uma das mais belas reportagens automobilísticas de todos os tempos. Era o teste de um Mercedes 300 SL "Asa de Gaivota" que, à época, já tinha mais de 30 anos de fabricação...
Eis que nossa chance de dirigir o clássico, enfim, chegou. Aproveitando a efeméride dos 60 anos da linha SL, o Classic Center da Mercedes convidou um grupo de jornalistas para dirigir as primeiras gerações do modelo por estradinhas sinuosas nas montanhas da Andaluzia. Uma oportunidade rica em cheiros e vibrações.
Para começar, um pouco de história: estrela dos GPs nos anos 30, a Mercedes cessou suas atividades esportivas por causa da Segunda Guerra. Só em 1951 a marca pôde voltar às corridas e, para a reestreia, decidiu criar um carro tipo "turismo". Seria o primeiro passo antes da Fórmula-1.
O bólido ficou pronto em 1952, obra do grupo liderado por Rudolf Uhlenhalt, gênio que serviu à Mercedes por cinco décadas. Batizado de 300 SL, o modelo (W 194, no código interno) reunia soluções então inéditas, como a estrutura tubular. Era um chassi que pesava só 50 quilos, formado por seções triangulares. Com a gaiola metálica, não havia espaço para entrar no cupê. O jeito foi tomar a capota, fazendo com que as portas se abrissem para cima — daí o apelido Gullwing, ou "Asa de Gaivota".
Um motor de seis cilindros e 3,0 litros foi emprestado pelos grandes Mercedes 300, carros oficiais do governo alemão. Com preparo, chegava a 175cv. Foi preciso inclinar o motor para que coubesse sob o capô baixo e aerodinâmico.
Com o avassalador sucesso nas corridas, o 300 SL parecia ter cumprido sua missão. Em 1954, porém, o carro de competição ganhou novo uso. O importador Max Hoffman propôs que a Mercedes fizesse uma versão de rua para os EUA e encomendou mil desses 300 SL. O resto é história e sensações — que tentaremos descrever:
W 198 cupê (1954-1957)
É o primeiro 300 SL de rua. Cuidado para não bater a cabeça na porta. O volante bascula para a frente, permitindo que um motorista barrigudo entre na cabine. Uma vez instalado, fica-se numa ótima posição.
Com as portas fechadas, o ambiente é claustrofóbico, já que os vidros laterais não abrem (só os quebra-ventos). Após duas tentativas, o motor acorda com seu som metálico e nervoso. O cheiro de mistura rica e gasolina boa enebria.
Na estrada, é chamar forte no acelerador a 2.000rpm que ele cresce com incrível facilidade até 5.000rpm. É muito motor para o um carro com suspensão traseira por eixos oscilantes. Alcançamos 150km/h num instante — ficamos imaginando o que era isso em 1954...
Chega-se muito rápido na curva, o acionamento do freio é pesado e não se pode entrar tão quente... O volante fica numa posição bem vertical e a direção é bem direta, facilitando os necessários contraesterços... Achei que ia apanhar do câmbio, mas a sincronização é perfeita e o acionamento, leve (a ré é a exceção). São apenas quatro marchas.
A bomba injetora mecânica alimenta as seis bocas do motor sem engasgos ou falhas. A injeção direta não dá um buraco. Pura revolução!
Estradinha travada, serpenteando as montanhas, som metálico do motor e da transmissão reverberando, direção levinha. Lá pelas tantas, lembro que um 300 SL hoje vale um milhão de euros (na Europa...). A responsabilidade pesa.
Dirigir o 300 SL com sua suspensão traseira por eixos oscilantes é um grande exercício físico e mental. No fim, por ato falho, fiquei perdido e rodei 10km a mais do que os 20km previstos. Sonho realizado!
W 198 II Roadster (1957–1963)
Depois do "Asa de Gaivota", veio o 300 SL em versão conversível. A mecânica é basicamente a mesma, mas se trata de um carro muito mais fácil e civilizado de dirigir. Sem capota, não há ruído alto ecoando no interior. A transmissão não geme tanto, a suspensão é mais controlada. É o mesmo carro, só que mais civilizado.
W 113 "Pagoda" (1963–1971)
Passamos à geração W 113 — na versão 280 SL. É um carro bem menor e mais dócil do que os anteriores, além de ser o primeiro Mercedes a trazer pneus radiais. Seu câmbio automático de quatro marchas dá uns tranquinhos e tudo o mais cativa: o som do motor, as sensações tácteis e visuais do volante de baquelite... Chega a 130km/h com grande facilidade, mas tem relações muito curtas na transmissão: em quarta, a 100km/h, estamos a 3.500rpm.
O carro dispunha de um teto rígido desmontável, cuja parte superior era côncava, lembrando o telhado dos templos asiáticos - daí o apelido Pagoda. Mas aqui vamos mesmo com capota arriada, integrados à natureza do Sul da Espanha, por estradinhas maravilhosas, sentindo cheiros e vento... O suave passeio com o 280 SL parece um sonho.
Se me fosse permitido trazer um SL para casa, o W 113 seria minha escolha.
R 107 (1971–1989)
Era o conversível dos superchiques e playboys dos anos 70, povoando a imaginação de um Brasil com importações escassas. Abaixar a capota requer um certo trabalho. Estofamento xadrez e os instrumentos com ponteiros amarelos dão o tom da época. Sua lanterna canelada foi copiada até na VW Brasília.
O R 107 é mais largo e tem mais suspensão do que o antecessor — é fácil de dirigir. Foi o primeiro SL a trazer motor V8 e injeção eletrônica (em vez da mecânica). É simples conviver com ele, ainda que não tenha a mesma elegância dos modelos mais antigos.
R 129 (1989–2001)
Aburguesamento total: o SL inchou como um Elvis na fase Vegas. A versão 600 SL tinha um V12 furioso, enquanto a de seis cilindros (280 SL) nasceu para aposentados de Miami.
Foi o primeiro SL com capota elétrica, ABS e controle de estabilidade, além da suspensão hidropneumática.
O melhor do dia foi perceber que, apesar de personalidades diferentes, esses Mercedes carregam indisfarçáveis laços de parentesco. Coisa de DNA....
Jason Vogel tem um texto sempre interessante, acompanho suas matérias no O Globo desde seu início. Quanto à preferência dele em levar o W113 para casa, eu enlouqueceria com qualquer um deles na minha garagem... Enquanto não dá, vamos trabalhar para isso!
ResponderExcluirErrado! O primeiro SL com freios ABS foi a R 107, 1980!
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